Pular para o conteúdo principal

CAPÍTULO III – O REINO DE CRISTAL

Durante parte da difícil adolescência que tive, Batata, Ana e eu, conservamos o costume de nos reunir para jogar videogames nos fins de semana, isto é, quando possível, já que eu era o único a ter um console, e usá-lo, acabou ficando mais complicado devido à presença de meu primo então, na maioria das vezes, apenas jogávamos algo semelhante a RPG, claro que, a nossa própria maneira, e esta brincadeira ficou ainda mais importante para nós quando uma destas aventuras se estendeu até meus sonhos e fui perseguido por aquele dragão. Não contei para mais ninguém além de meus dois amigos, afinal de contas, as experiências passadas com o boxe me fizeram temer receber mais sermões quanto a estarmos “brincando com forças sobrenaturais/demoníacas”, apesar de que, pensei, por algum tempo, que talvez a explicação para o que aconteceu nesta ocasião fosse bastante simples e que não tinha nada de sobrenatural, pois existem alguns estudos que apontam que Gamers têm mais chances de terem sonhos lúcidos:

GACKENBACH, Jayne (Psicóloga da Grant MacEwan University, no Canadá). Entrevista para o site THE VERGE 2014: “O principal paralelo entre jogar e sonhar é que, em ambas as situações, você está em uma realidade alternativa, construída biologicamente ou tecnologicamente.”

Mas, o engraçado é que, com o passar do tempo, as coisas se inverteram, ou seja, em vez de sonhar com nossas campanhas a noite, jogávamos os sonhos que havia tido durante o sono, e, após muitos sonhos terem sido transformados em nossas aventuras, passei também a escrevê-los e a completar as lacunas segundo me vinham as inspirações, ligando todos eles em uma única e grande estória, esta foi a primeira versão deste livro que escrevo agora e, na época, o chamei de: O REINO DE CRISTAL. Nele, escrevi sobre dragões e guerreiros invencíveis, engajados num conflito que durava séculos, pela posse de espadas mágicas e a soberania de todos os reinos. Na época eu ainda acreditava que tudo isso era uma simples ficção, um fruto de minha imaginação fértil, desperta por nossas brincadeiras, mas não era este o caso, aquelas páginas se tornaram reais de tantas formas que seria impossível lhe expressar em poucas palavras, tudo o que posso fazer é lhe mostrar sua profundidade através dos relatos de minha vida, e lhe contar o que aconteceu quando um dos habitantes do mundo que eu “havia criado”, simplesmente se colocou de pé a minha frente.
– Parece loucura?
– Claro que sim!
Foi por isso que acabei onde estou, mas, mesmo preso neste tormento, encontrei alguma esperança, quando uma pessoa muito especial, minha única amiga aqui dentro, me aconselhou e propiciou a revelar finalmente aquele CONFLITO ENTRE MUNDOS a todos, para o qual, fui um instrumento em sua resolução. E mesmo que, neste momento, ela já não esteja aqui comigo, certamente não me deixou desamparado pois, pude receber, como um favor, que alguém fosse até minha avó, e era muito importante que fosse especificamente até a minha avó e mais ninguém, e lhe pedisse meus antigos cadernos que (com sorte) ainda estavam devidamente ocultados numa das caixas em meu “quarto”, e eram eles, que continham todas as histórias que, não eram simples sonhos!


PRIMEIRA PARTE.


PRÓLOGO:

STARWISH

Há uma pequena aldeia no Sul da Terra do Sol Eterno, escondida numa antiga floresta, tão próxima ao oceano que sua música embala o sono ensolarado de seus moradores; saltando por entre as árvores, está a montanha sagrada que provém a vila, sombra contra o Sol Eterno. Seria muito conveniente se fosse possível nomear este lugar, porém, seu verdadeiro nome desapareceu com o passar do tempo e a perda do idioma local entretanto, em uma adaptação nas línguas atuais, a aldeia é chamada da mesma forma que seu monte sagrado: Montanha da Queda. Diz a lenda que, durante a Guerra das Estrelas, uma delas colidiu contra o solo, no mesmo lugar onde hoje está localizada a pequena aldeia, e o impacto criou uma enorme cratera. Em seguida, a estrela reuniu toda sua força e levantou voo de volta ao céu, a própria terra a teria ajudado nisso, se erguendo debaixo de seus pés, a fim de, impulsioná-la e, neste esforço, o solo se curou do golpe de tal maneira que a vida brotou nele e cresceu em direção ao céu, nasceu então à floresta. Até o Sol se demorou na região para observar a estrela e teve seu curso permanentemente alterado.
É neste lugar com tanta história, que vive o único jovem que possui cabelos louros em todo o país, seu nome é Starwish. O povo que o abriga teme, acima de tudo, as antigas lendas, e observa muitos ritos dos mais variados tipos. Uma de suas tradições, dita que, quando um rapaz completa quatorze anos, seu pai deve levá-lo para pescar nada menos que um tubarão em alto-mar, e os sábios e nobres anciões nos ensinam sobre a origem desta prática:
– No céu, as estrelas têm combatido terríveis feras desde o início dos tempos; durante a labuta, uma destas caiu sobre nossas terras, porém, na ocasião nos concedeu um grande presente, o mesmo presente pelo qual o próprio pó da terra sentiu-se inspirado o suficiente para desejar segui-la de volta a batalha, este presente chama-se ímpeto!
– É por isto que se deve conquistar a força, o respeito daqueles que moram abaixo da montanha e, no momento em que a infância termina, tem início a peregrinação ao oceano e a caçada a uma das mais terríveis feras aquáticas. Fazemos isto, imitando aquela estrela que alçou voo de volta ao Oceano do Firmamento, à batalha e a caça daqueles que trazem a noite.
Ao retornar, o desafiante se torna um Guerreiro das Estrelas e recebe as mais altas honras, sendo aceito e respeitado por todos como membro verdadeiro da aldeia. Contudo, Starwish era um caso especial que precisava ser estudado pelo concelho dos cinco anciões, então uma reunião foi organizada na Casa da Montanha. Era a maior e mais estranha morada da cidade, pertencia a família mais antiga de lá, o mais próximo de governo que se poderia encontrar nesta região tão isolada do mundo. A casa fora feita a imagem da montanha, era tão alta que além de poder ser vista a distância, também tinha seu cume coroado de neve, sem dúvida, até mesmo a Montanha da Queda apreciava sua miniatura e permitiu que a mesma recebesse uma coroa, como um príncipe a sombra do rei. Era tão antiga que a data exata de sua construção fora esquecida e tudo dentro dela, cheirava mofo e velhice, asfixiando os mais sensíveis.
Na Casa da Montanha os cabeças das cinco famílias se reuniam em suas cadeiras chamativas, o concelho mais parecia uma disputa de quem possuía a barba mais longa e bem cuidada e, só após exibirem suas barbas a todos os moradores da aldeia que compareceram a reunião, é que os cinco também se sentaram atrás de um púlpito coletivo, tendo a frente do mesmo, três pessoas de pés e ligeiramente nauseadas pelo cheiro da velhice, tratava-se do rapaz e seus guardiões, um casal gentil de idosos. Atrás dos três havia uma grande plateia, como em um espetáculo, aquilo tudo não se parecia em nada com uma reunião para se decidir como proceder no caso de um órfão que deve cumprir as tradições do lugar, na verdade, era mais como um julgamento, e o réu já estava condenado, ele apenas aguardava a sentença. Os espectadores debatiam atrás dos três, sobre qual seria a punição mais justa para um forasteiro de cabelos tão diferentes que se atrevia a querer participar das tradições locais.
– Ele é apenas um garoto como qualquer outro e faz parte de nossa aldeia, nos traria má sorte negar seus deveres!
Disse com certa dificuldade na fala, o senhor ao lado de Starwish, pousando-lhe a mão sobre o ombro, aparentava ser muito mais velho que o próprio líder do conselho, mesmo que sua barba fosse rala e mal cuidada, o que certamente simbolizava o pouco valor que suas palavras teriam. Os ânimos se exaltaram, gritos e dedos eram dirigidos ao gentil senhor que acabara de falar, então, no meio da algazarra, aquele dentre os cinco que possuía a maior barba que já se tenha visto, se levantou, ergueu uma das mãos e o silêncio se fez imediatamente, ele relembrou em alta voz os fatos daquele dia:
– A guerra entre a Terra Eterna e o Reino Congelado se intensificara, soldados do Norte avançavam cada vez mais longe abaixo do Sol Eterno; em meio a este conflito estava a nossa pequena aldeia Montanha da Queda.
– Aqui nunca houve noite e, mesmo assim, a escuridão se acercou no céu, o silêncio era tanto que teria sido possível ouvir o deslocamento das nuvens, caso houvesse tal coisa. Abaixo da escuridão, caminhavam os soldados do Norte que, acostumados as terras geladas, precisavam ser precedidos pela noite para avançar.
– O silêncio então, fora perturbado por raios e trovões, alguns de nós viram tais coisas pela primeira vez na vida. Em seguida vieram os ventos, pássaros fugiam e plantas e animais eram levados pela tempestade.
– Os afazeres foram abandonados, a lenha a ser cortada foi deixada e casas a serem reparadas largadas a própria sorte quando nos escondemos e olhamos por detrás de nossas janelas.
– Tudo isto, era apenas um anúncio, um chamado a batalha, pois indo de encontro ao olho da tempestade, um número tão grande que não se poderia contar de soldados apressados surgiu. Vindos de lugar nenhum eles passaram por dentro de nossa vila. Alguns trajavam armaduras pesadas que reluziam friamente a cada relâmpago, e estes, corriam como se fizessem parte dos fortes ventos. Porém, a maior parte eram soldados comuns carregando armas muito estranhas, talvez estivessem trajados de negro, pois via-se apenas sombras escuras cambaleantes a cada clarão. Também vieram muitos veículos militares que destruíram tudo o que estava no caminho, bancos, ferramentas, placas…
Outro dos anciões do concelho, a direita do líder, levantou-se, tomou posse do discurso e acrescentou:
– Estes eram soldados daqui, do próprio Sul, que vieram em auxílio de nossa gente e, com certeza, não havia tempo para se preocuparem com destruição de propriedade alheia, pois precisavam se colocar entre nós e a tempestade tão logo quanto pudessem!
Um olhar de censura cortou o ar por sobre os sussurros da plateia, o líder do concelho não via a situação daquela forma, entretanto, não chegou a contradizer as palavras ditas, apenas retomou a história usando certo tom de afronta:
– Um oceano destruidor de soldados, Elites e veículos, passaram por nossas terras, e foi quando seu número começava a diminuir que ouvimos os tiros, grunhidos e outros sons irreconhecíveis que sobrepujaram a tormenta e a marcha, os sons beiravam o fim do mundo e todos estremêssemos!
– No meio do caos, uma cena se destacou: a montanha mostrou sua ira e atraiu para si tantos raios, que era como se o dia tivesse retornado para expôr a todos, as armadilhas de uma mulher de cabelos louros. Com sua luz, ela nos mostrou nitidamente, que suas vestes eram totalmente diferentes dos demais soldados, pois não trajava-se com armaduras ou uniformes militares e sim com pesadas roupas de inverno. A estranha deixou na rua principal uma criança inconsciente, em seguida deu alguns passos e desapareceu na multidão.
– Ninguém sabe dizer, com certeza, o que aconteceu depois, porque nosso monte sagrado escureceu os céus para enfatizar que a mulher e a criança eram tudo o que devia nos preocupar, ainda que, soldados continuassem a correr para a mesma direção durante algum tempo. Depois disso, os sons se distanciaram e a noite recuou diante do exército do Sul, logo não restou mais nada além de uma fina garoa.
– E foi este casal, a nossa frente, que desobedeceu o aviso da montanha saindo ao encontro da criança, então vimos seus cabelos louros, provavelmente era o filho daquela mulher, contudo, saber de sua árvore genealógica pouco importa, o que nos interessa é a cor de seus cabelos…
– Não existe tal cor abaixo do Sol Eterno!
Gritos e xingamentos se elevaram com ainda mais força, e nada mais pôde ser ouvido da história da criança pelos presentes, porém, esta não acaba aqui: aquelas pessoas não se importaram com a criança, e a teriam jogado no mar no mesmo dia, não fosse pelos únicos a terem a coragem de se pôr a favor da vida do bebê abandonado, e estes, foram o casal de idosos que agora permaneciam ao seu lado de pé na assembleia. Na ocasião, enquanto todos olhavam apreensivos a distância, senhora se aproximou da criança, abaixou-se e tomou-a nos braços, e notou que, apesar de não ser um recém-nascido, ainda era muito jovem e não poderia contar o porque de ter sido deixado ali. Enquanto se desvencilhava da multidão insatisfeita, a mulher olhou para o Sol que brilhava mais forte do que nunca e exclamou:
– Não acho que tenha sido uma advertência para que tenhamos medo de ti, a montanha pareceu tão feliz com tua chegada, que iluminou os céus para que o víssemos, em seguida encheu-se de pesar pelo abandono que sofreste, é por isso que as trevas prevaleceram.
– E assim como o monte desejou seguir aquela estrela, assim também, desejou ajudá-lo minha criança, e portanto teu nome será Starwish!
O marido vinha em seguida, ouviu o que a mulher dizia e questionou:
– Se estiveres errada, isto não trará má sorte para todos nós?
– Como poderia uma criança tão linda trazer qualquer coisa que seja má? – retrucou ela.
De fato, não era nenhum pouco estranho que ele pensasse daquela forma afinal, conhecia muito bem as crenças do lugar onde vivia, e seu temor residia no nome escolhido para o bebê, já que, muitas vezes, nomes não são pensados por seus pais e sim “sugeridos” a eles por forças externas, divinas ou não, e lhe parecia haver um destino que acompanhava este em particular, algum desejo sombrio pairava sobre o garoto. Porém, com o passar do tempo, ele concluiu que a sombra que acompanhava Starwish, não era um mal presságio para aqueles ao seu redor, o que pressagiava era o sofrimento do próprio rapaz, porque, mesmo que se tratasse de uma criança, crescer como estrangeiro ali não fora nada fácil, forasteiros nunca eram aceitos entre eles e, considerando a cor de seus cabelos, seu caso era ainda pior. Starwish não tinha amigos e era sempre maltratado ou ignorado pelos adultos. A medida que crescia, o constante preconceito o tornou diferente das demais crianças, não mais se interessava em brincar e passava todo o dia olhando para as árvores da floresta ao redor da aldeia; muitos diziam que ele possuía alguma lembrança do dia de sua chegada, por isso gastava tanto tempo olhando para a mesma direção que tantos soldados se dirigiram. E quando os pesadelos do jovem começaram, as pessoas comentaram que este costume é que os havia trazido. Os pesadelos eram tão terríveis que até os vizinhos de uma grande distância conseguiam ouvi-lo gritando em desespero se a noite estivesse calma:
– N-NÃO, NÃO OS MATE… ESTÃO TODOS MORTOS, TODOS ELES!
– DEIXE-ME EM PAZ, QUERO SAIR… DEIXE-ME EM PAZ!
Ainda dormindo, o garoto se levantava e arremessava para longe todas as coisas que estivessem ao seu redor, de tal modo que tinha de ser socorrido pelo casal.
– Será mesmo que está sonhando com aquele dia? – questionava a senhora a cada nova crise – Seria possível um bebê tão novo se lembrar de cenas do combate que ocorrera?
– Pode ser – respondia o marido – aquela mulher era estranha, parecia estranhamente menor do que nós e, com certeza, era uma inimiga, deve ter sido morta diante dos olhos desta criança, mesmo que não tenhamos conseguido ver tal cena na escuridão, ele viu, depois, o corpo da mãe fora arrastado para longe com tantos homens e carros passando.
– Nunca lhe dissemos nada disto e, mesmo assim, ele sabe, por que outro motivo passaria tanto tempo olhando para a direção em que a mãe desaparecera?
Por carregar tamanho fardo dentro dos sonhos, somado ao preconceito, o garoto havia renegado a infância e se tornava cada vez mais independente, tanto que, aos sete anos, resolveu que moraria sozinho. Bem próximo a casa de seus guardiões, havia uma cabana caindo aos pedaços, que o gentil senhor e o próprio garoto reconstruíram. Trabalharam durante dias, pois se tratava de uma criança e um idoso, até que, finalmente, taparam com tábuas os buracos que haviam sido feitos no dia de sua chegada, e quando ficou pronta, ele se mudou. É claro que, Starwish recebia todos os cuidados que uma criança necessitava, por parte do casal, porém, para todos os efeitos, agora morava sozinho. Dentro da nova moradia, os sonhos deram lugar a visões maiores enquanto ainda estava acordado e, certo dia, foi assim que o encontraram: sentado ao chão numa mistura de choro e riso – e-eu os ouvi… – disse ele.
– Conte-nos meu filho, o que ouviste? – questionou a senhora.
– Ouvi milhares de pessoas gritando de dor – respondeu ele – e um barulho estranho, uma catástrofe vai acontecer e todos gritarão…
A senhora se ajoelhou e pôs-se a chorar descontrolada ao seu lado, enquanto o senhor a tentava acalmar então, seu filho repetiu as palavras que ouviu em transe e os dois se calaram por um instante:
– “Vos trarei a destruição, a morte e o brilho, a face dos quatro reinos”!
– Alguma coisa virá do Oeste… não sei quem ou, o que, entretanto, estou ciente de que, “isto”, cobrirá tudo o que é possível se perder a vista no horizonte com cristais e sangue, eu vi…
O senhor, após pensar um pouco, assumiu uma expressão seria e disse ao rapaz:
– Não contarás sobre isto a ninguém, meu filho. Nunca. Se o resto das pessoas souberem o que viste, virão atrás de tua vida e nesta ora, não poderemos fazer nada!
A senhora por sua vez, chorou ainda mais e lançou-se sobre a criança dizendo:
– Meu filho, estas visões… estes sonhos… s-são apenas isto, simples sonhos, tens de parar com elas, é preciso!
– Pare, pare de sonhar, seja uma pessoa normal!
Ela o sacudia com tanta força que sequer pôde ouvir alguma resposta, apenas seu marido, que assistia a cena impotente, foi quem ouviu o que dissera o filho:
– No meio dos gritos e choro, procurei encontrar as vozes de nossos vizinhos porém, não tive a felicidade ouvi-los…
Se tais palavras viessem a tona no julgamento do garoto, tudo estaria perdido, e até o gentil casal, correria perigo. O concelho dos cinco anciões se colocou de pés então, seu líder, pronunciou:
– Ter um infante destes, que se mudou para a própria casa para falar com o demônio, seja na aldeia, seja em um barco de pesca, trará nossa ruína. Foi isto que a própria criança já declarou, ele deseja nossa morte, então devemos simplesmente matá-lo, e não oficializá-lo como um membro da aldeia!
Ao ouvir estas palavras, o casal perdeu instantaneamente a esperança – como eles souberam disso? – pensaram ambos. Ora, não havia nenhum mistério nisto, na verdade, pois em lugares deste tipo, sempre havia alguém para ouvir conversas de outras pessoas e, em seguida, espalhá-las. Foi assim que seus apelos para o bom senso foram ignorados. O concelho continuou:
– As crianças da mesma idade, temem se aproximar, há algo maligno a volta deste, e ainda que lhe fosse permitido cumprir a tradição, tua família postiça não está apta a realizá-la, que provas precisais mais de que é um erro tê-lo entre vós?
A declaração foi tão poderosa que todos ali já se preparavam para pegar em armas, enquanto outros se colocaram entre a pequena família e as saídas do local, de modo que os três não puderam fazer mais nada, além de se abraçar e esperar pelo pior.
De súbito, um grande estampido ecoou pela sala, ganhando o silêncio. Os dois rapazes que bloqueavam as portas principais foram atirados com força ao chão, quando estas se abriram, e todos se viraram para olhar e perceberam que quem as cruzava, não era outro senão capitão do maior navio da vila e também morador da mesma casa em que se encontravam. Ele caminhou aos olhos de todos, parou de frente aos anciãos e repreendeu-os, de modo que, os velhos até tentaram, porém, não foram capazes de se opor, em seguida se voltou a plateia e disse:
– Como tens vós, coragem de criar toda esta confusão em minha casa?
– Acham que permitirei tal atrocidade?
– Eu devia matar a todos!
– Entretanto, como a pesca desta temporada está sendo incrivelmente proveitosa, tão proveitosa que tivemos de voltar e descarregar nosso navio rapidamente antes de partir para a pesca novamente, hoje estou me sentindo generoso.
– Ofereço-me para cumprir o ritual deste rapaz, vou tomá-lo como membro de minha tripulação imediatamente e partir, aqueles que discordarem fiquem à vontade para sacar suas armas!
Após dizer, pousou a mão sobre a espada na cintura e aguardou por um instante; ninguém disse palavra alguma.
– Vejo que se tornaram sensatos bem depressa, ou, quem sabe, se mostraram os covardes que sempre foram, tolos que se exaltam na casa de teu mestre, quando este não se encontra!
Ele então tomou Starwish pelos ombros e o levou, apenas se detendo por um instante para receber os agradecimentos dos guardiões do rapaz. A caminhada apressada os conduziu porta a fora e pelas ruas de terra batida da aldeia. O vento soprou forte quando passaram por debaixo das árvores, ou assim lhe pareceu, pois o capitão apressou seu passo ainda mais, quando dentro da floresta. Eles logo chegaram a praia, de onde se podia ver o grande navio negro com velas brancas, balançando com as ondas. Na areia, havia apenas um pequeno bote, dentro do qual, o capitão, o rapaz e outro membro da tripulação tiveram de remar até o verdadeiro objetivo. Dentro do navio o garoto sentiu o cheiro da madeira, muito semelhante ao da Casa da Montanha, devido a ambos terem sido feitos da madeira das árvores da floresta ao redor, porém, no navio, estava misturado ao do mar, ele observou a floresta, na direção em que a aldeia e seus pais adotivos estariam, e a vil balançar, por causa das ondas, algo que já era invisível a todos os outros no navio que estavam acostumados dos longos anos no mar. Apenas depois de distribuir algumas ordens no convés, é que seu sequestrador finalmente se apresentou devidamente: o nome do capitão era Ceres e, assim como os anciões, também possuía uma barba longa e grisalha, o que demonstrava alguma idade, e ela ainda terminava em uma barriga saliente, o que chamava muita atenção, principalmente em suas brilhantes roupas de couro, entretanto, a característica mais marcante do capitão, não era sua baixa estatura ou sua barba, esta era, com certeza, a cara de poucos amigos que intimidava mesmo o maior dos brutamontes, fora ela, e não qualquer outra coisa, que havia reivindicado o silêncio dentro da assembleia.
O garotou olhou atentamente para Ceres, afinal, pela primeira vez na vida, lhe viera algum apoio que não partia de seus pais adotivos, o que também, deixou de significar algo para Starwish rapidamente, pois, em instantes percebeu que fora jogado num navio com mais de cinquenta tripulantes que desejavam atirá-lo ao mar, e aquele capitão era o único obstáculo a ideia.
– Criança – chamou Ceres – tenho certeza de que receberei o teu perdão quando tudo acabar. Depois desta peregrinação, todos serão forçados a honrá-lo, quer gostem ou não, pois terás te tornado um autentico Guerreiro das Estrelas!
– Acredite quando lhe digo que tua vida melhorará, afinal, já sabeis como todos são supersticiosos em casa.
Em resposta, Starwish fez uma expressão séria, em seguida, exclamou:
– Não considero nenhum favor, ser agarrado contra a vontade e atirado num navio repleto de pessoas que querem o meu fim!
– Sou eu, aquele que é atormentado de dia e de noite com pesadelos de morte que não posso controlar, e mesmo sofrendo, fui marginalizado e até agredido por isto!
Ceres sentiu pena do garoto, pois conhecia aquela vida, ele então olhou para o convés, que já começava a brilhar com o trabalho daqueles que esfregavam o chão e disse:
– As pessoas são assim mesmo, criança, destruiriam o mundo se tivessem este poder, e o fariam simplesmente por serem pessoas. Que atitude deverias esperar para com um infante que pensam lhes trazer mal agouro?
O garoto olhou com tamanha agudez em direção ao capitão que qualquer outro teria se intimidado – não sou uma criança! – disse ele, porém, Ceres não deu importância alguma a isto e falou:
– Já estive em teu lugar… também sou um forasteiro, abandonado nestas terras. Estrangeiros são sempre um sinal de mal agouro para esta gente, e por isto, enfrentei os mesmos problemas que tens até completar meus quatorze anos e passar pela peregrinação.
– É claro que ninguém foi contra minha partida, nem quiseram me matar…
– O fato é que, tudo melhorou para mim desde então. No início as pessoas falavam comigo obrigadas pelos costumes, e confesso que foi muito divertido fazer meus piores inimigos me cumprimentarem cordialmente a vista de todos, manhã após manhã, porém, a união desta formalidade com o passar do tempo, os fizeram esquecer o porque de me odiarem tanto.
– Depois me casei com a filha de um dos anciões, e hoje escutam o que digo sem que seja apenas por respeito a tradição. Tenha paciência, tudo se acertará.
– Não me interessa ser aceito por pessoas assim! – gritou Starwish, em seguida, deu as costas a Ceres e se dirigiu até os corrimões laterais do navio, lá ele ficou observando o mar sem dizer palavra alguma. O capitão, por sua vez, sabia que não seria seguro deixá-lo daquela maneira a vista de todos, ou seja, o único a não ter afazeres no navio, tão à vontade que poderia ficar olhando o mar como uma criança que sonha acordada. Tampouco seria recomendado mandá-lo trabalhar com os outros, que se veriam felizes em obrigá-lo a fazer o que quer que fosse, então, sem opção, o capitão declarou uma folga pelo resto do dia. Gritos de euforia e festejos foram ouvidos até a hora em que as sombras mais se alongavam abaixo dos pés, neste momento toda a algazarra cessou, porque mais uma das tradições deveria ser observada: um feroz combate entre dois Guerreiros das Estrelas portando espadas foi encenado em homenagem a primeira delas que caiu do céu. As lâminas brilhavam na penumbra e se chocavam uma contra a outra com tanta intensidade, que a luta parecia real aos olhos do jovem, por esta razão, sem se dar conta do que fazia, ele deixou seu lugar de isolamento ao mar e se aproximou de todos para assistir o espetáculo. Ceres notou seu interesse e tentou usá-lo para puxar assunto novamente no término da apresentação:
– Vejo que gosta de lâminas, rapaz.
Starwish não deu nenhuma importância ao comentário, nem olhou em direção ao superior. O capitão tentou instigá-lo uma vez mais:
– Já ouviu sobre a espada que domina o mundo?
O rapaz se inclinou levemente em direção ao capitão, e olhou-o pelo canto dos olhos. Ceres sorriu de forma igualmente discreta e contou:
– É isso o que nos dizem os antigos: que a estrela de nossa aldeia não foi o único ser a descer até nós, houve também outro, um tipo de conquistador, que cobiçou não apenas nossas terras. O ser almejava subjugar todos os mundos, porém, teve seu intento frustrado, quando os homens e aqueles dragões que ainda viviam no Oeste cooperaram para destruí-lo.
– No entanto, pessoas cruéis foram cativadas pelo poder que haviam testemunhado, foi então que tomaram dos ossos do conquistador e, usando a alquimia, forjaram uma espada. Era uma arma formidável, pena que seu brilho apenas trouxe sofrimento. O desejo da espada, era o desejo da criatura presa em seu interior, a luz de sua alma, era o que alimentava o brilho da lâmina e o que mais desejava, era que todos os seres mergulhassem num mundo cheio de feiura e obscuridade, que todos vivessem sob o julgo de sua vingança.
– Para se opor as trevas, outras três espadas foram forjadas de maneira semelhante.
– Com ossos de um dos dragões que lutaram ao lado dos homens, nasceu uma segunda espada, tão poderosa quanto a primeira, ela foi chamada de Ascalon. Por duas alcunhas, ela ficou conhecida mais tarde, sendo a primeira: assassina de dragões, entretanto, por haver sido usada para aniquilar as grandes serpentes, de quem, era aparentada, sempre que era brandida, trazia ao local uma chuva envolta em tristeza, como se a própria lâmina chorasse pela chacina a qual, foi um instrumento, sendo chamada a partir de então de, lágrimas da serpente.
– Usando ossos de um poderoso e pacífico guerreiro humano, forjaram a pequena, porém, afiada, Bar-Jonica. Tão excelente era seu fio, que seus portadores nada temiam, assim, ela foi chamada de a precipitada.
– Não se diz muito sobre a quarta espada, o que sabemos, é que foi criada separada das outras, ao longe, no Leste, e seus possuidores a ocultaram assim que pôde ser empunhada, não participando da batalha para a qual fora feita.
– Com a união momentânea de duas das armas, foi possível derrotar a maldade da primeira espada e seu portador, só que, o mal que ela continha não poderia mais ser desfeito. Sem nenhuma outra opção, ela foi selada nas terras do Oeste, atravessando o grande mar, e todas as viagens para lá foram proibidas.
– É por isso que se diz que, estando sozinhos, se escutamos um chamado de nossos nomes, quando não há ninguém para proferir tais palavras, trata-se da espada maligna que clama por um novo portador, para que as trevas de sua vingança possam finalmente cobrir o mundo.
Todos os tripulantes já haviam se retirado para os dormitórios quando Ceres terminou de contar sua história, deixando apenas ele mesmo e jovem rapaz no convés. O capitão disse:
– Se desejares, rapaz, posso ensiná-lo como se usa uma espada e, em troca, terás de te dedicar ao trabalho que lhe incumbirei até o final da viagem.
Starwish assentiu com a cabeça e ambos se retiraram para o descanso.
No dia seguinte, e em todos os que vieram depois, o capitão o incumbira de conservar a limpeza feita no navio ainda no dia de sua partida. Após o fim do segundo dia, no início da penumbra, ele recebeu sua primeira aula de esgrima e, desde que tocou na espada, o rapaz se mostrou muito talentoso. Esta rotina se seguiu, dia após dia, até que a viagem completou uma quinzena, e foi quando o rapaz questionou:
– Estivemos navegando por dias, mar a dentro, para onde nos dirigimos exatamente?
– Rumamos para bem perto da costa do Oeste – respondeu Ceres. Starwish se mostrou surpreso, então perguntou novamente:
– Quando me contaste a lenda da espada dominadora, dissera também que as viagens para o Oeste foram proibidas, então por que nos aproximamos de lá?
– Não aprendera nada com o preconceito que sofreu na aldeia rapaz? – perguntou o capitão – são apenas lendas de um povo supersticioso garoto, nenhuma delas é real!
– A verdade é que, nosso objetivo não é cumprir tua peregrinação, todos que estão abordo visam a pesca e o lucro que resultará dela, porém, os melhores locais se encontram próximos ao Oeste, o resto dos oceanos já estão praticamente mortos, não há peixe algum senão ao redor das Terras Proibidas, pois as pessoas temem se aproximar.
Ceres caminhou em direção ao mar e apontou para o Oeste:
– Vê aquelas nuvens escuras sobre as águas?
– A maior parte das pessoas de nosso país nunca viram uma tempestade de verdade, por isto, temem esta região do mundo, eles têm medo do desconhecido, entretanto, não existe nada de sobrenatural ou de agourento numa tempestade, é apenas uma força da natureza como todas as outras.
– Embora devamos também, agradecer por serem tão ignorantes, pois, desta forma, temos pouca concorrência no local, além de nós, apenas os militares vêm até estas águas.
Interrompendo o capitão, um enorme estrondo ecoou pelo céu, ambos olharam para o horizonte (embora apenas Starwish tenha se mostrado preocupado com o barulho) e viram estranhas nuvens escuras se firmando, diante disso, Ceres falou:
– Ouça estes trovões rapaz, creio que teus pais se esconderiam embaixo da cama, caso ouvissem o mesmo que nós!
Nesse momento Ceres riu tão descontroladamente que pareceu até cair num transe, enquanto o navio se dirigia para baixo das nuvens de chuva. Em poucos instantes, a tempestade que observavam se abateu sobre eles. Então, o capitão silenciou pois, em segredo, temeu ser esta a mais terrível de todas as que já havia visto. O barco foi arrastado para cima e para baixo nas grandes ondas, antes que o restante dos tripulantes surgissem no convés. Homens gritavam uns com os outros e afirmavam que, se aproximar das terras proibidas com aquele garoto a bordo fora a pior ideia, e muitas maldições ditas contra ele, foram abafadas pelos trovões, de sua parte, o capitão gritava ainda mais que os marinheiros, distribuindo os afazeres durante a emergência, só que, o próprio rapaz que subira a um navio pela primeira vez, não entendia nenhuma das ordens, apenas corria a esmo de um lado para outro tentando ajudar e se manter de pé, sendo sempre rechaçado por todos. Não bastasse a má sorte de entrar na pior tempestade que já viram, um raio caiu no navio, atingindo o mastro principal, o derrubando, e começando um incêndio, que não se apagava mesmo com a chuva e os ventos fortes, pois o convés se encontrava coberto do óleo pesado que era usado nos motores auxiliares (ligados apenas nos momentos de calmaria dos ventos), no dia anterior, um barril se quebrara ali e este fora o motivo de tamanha limpeza no momento da partida, entretanto, por mais que o local houvesse sido limpo, simplesmente não foi o suficiente para retirar o óleo do interior da madeira e as chamas rapidamente se espalharam, em minutos todo o navio estava tomado por elas e se despedaçando no oceano. Aquela enorme embarcação que desafiara a fúria do Oeste durante anos, estava agora reduzida a pedaços flutuantes no oceano, sua tripulação dispersa em botes, ou escombros que, finalmente, haviam se apagado quando mergulharam no mar e boiaram de volta a superfície. Esta última, era a situação de Starwish, pois nenhum dos homens permitiram que subisse a bordo de um bote, por muitas vezes ele tentou acompanhá-los e se salvar, não conseguindo nada, pois era empurrado para longe com golpes violentos e culpado pela situação. Fora o capitão, ninguém ali o ajudaria, contudo, Ceres desaparecera durante o incidente e jamais foi visto de novo, deixando o rapaz entregue a própria sorte.
A tempestade se foi e o rapaz permaneceu boiando num pedaço de madeira negra, sozinho em mar aberto, ele se questionou, antes de desmaiar, se realmente houvera trazido aquela desgraça…

CAPÍTULO 1:

AS TERRAS DO OESTE

O frio do oceano, de repente, deu lugar a um chão desconfortável, num piso de duros blocos de pedra escura e o rapaz despertou, talvez fosse por volta das nove da manhã. Observando o vazio do lugar, ele se perguntou se ainda estaria vivo, em seguida, se espantou ao ver as barras de metal e perceber que estava numa cela de prisão quase tão desagradável quanto a tempestade de que havia escapado.
– E o que mais devo esperar agora, ser conduzido a uma execução iminente?
Por mais estranho que possa soar, a verdade é que, não apenas acordar, como também estar naquela cela, desde o início, lhe pareceu algo normal, visto que todos em sua vida desejavam-lhe um destino provavelmente ainda pior que este, não obstante, o choque de ter sido jogado a morte durante a tempestade, estava se tornando numa depressão, pois fora a primeira vez que, de fato, alguém havia passado das simples palavras de raiva para uma real tentativa de o matar, e o pior, é que Starwish se lamentava por não estar morto, acreditando que tudo seria muito mais fácil dessa forma. No mundo inteiro não havia ninguém que não o odiasse, ele era uma pessoa desnecessária e, se morresse, ao menos não precisaria suportar aqueles seres desagradáveis de sua vila e todo o seu ódio.
– Não, isto nunca mais!
Tão profunda era sua depressão, que a ideia de ver o que havia além das grades da cela não existia, por alguns dias, ele se sentiu desmotivado até mesmo para odiar seus agressores, ele apenas se deitou no chão novamente e adormeceu. Dormiu tão bem como nunca o havia feito na vida, pois, seus pesadelos também perderam a vontade de atormentá-lo. Levou dois dias para que um carcereiro vestido com uniforme militar em tons de vermelho muito escuro aparecesse e este, trazia nas mãos uma tigela com sopa, que parecia bastante nojenta, como se fosse feita com a carne de algum animal repugnante. O guarda reparou que o prisioneiro dormia confortavelmente no chão, então atirou a vasilha através das grades, de modo a derrubar toda a comida sobre ele e o cheiro era desagradável, em seguida soltou uma risada rouca e se foi praguejando contra seu trabalho. Durante alguns dias, esta foi a nova rotina, alguém vinha com um pouco de comida, que era sempre atirada ao chão e era preciso pegar com as mãos algo que ainda desse para comer, depois ele deitava-se e dormia até ser acordado de novo e de novo!
Antes de se dar conta, um mês já haviam se passado desde que fora preso, porém, ao menos, devido à ausência dos pesadelos, Starwish recuperou anos de noites mal dormidas e inevitavelmente se sentiu um pouco melhor. Até que, certo dia, seu descanso foi interrompido, porém, desta vez, não por um guarda qualquer e sim por uma linda jovem de uniforme militar em um tom de vermelho mais vivo, provavelmente sinal de sua patente superior:
– Jamais pus meus olhos em alguém dentro desta cela com uma expressão de tanta paz! – disse ela. O rapaz se levantou e olhou com tamanho interesse para a garota que apenas reparou no jaleco branco que usava sobre o uniforme depois de muito admirar suas feições. Tinha cabelos negros como a escuridão, olhos da cor mar iluminado pelo Sol Eterno e lábios vermelhos como o sangue. A oficial aparentava ser tão jovem quanto o próprio garoto, embora fosse mais alta; trazia no rosto uma expressão gentil que, de forma alguma combinava com o uniforme militar, e fascinado com o que via, ele perguntou:
– Q-quem é…?
– Me chamo Júpiter – respondeu ela – sou a diretora do setor das prisões. E tu, quem é e de onde vieste?
Provavelmente não tivesse respondido a pergunta, ao menos, não de maneira tão cortês, se esta fosse feita por um dos guardas anteriores em vez da linda garota do outro lado das barras:
– Prazer em conhecê-la, meu nome é Starwish. Estive contra vontade num navio pesqueiro que afundou depois de uma tempestade, quando dei por mim, já estava aqui dentro, e novamente, contra a minha vontade!
– Desejo lhe perguntar: onde estamos e por que sou prisioneiro?
– Estamos na Floresta Maldita – respondeu ela – próximos a uma praia situada na costa das terras do Oeste, numa base pertencente ao Sul. Para cá, são trazidas todas as pessoas que não farão falta para a sociedade, e que foram coletadas pelos nossos soldados, tal como a ti mesmo, foste trazido aqui para servir a um bem maior!
Depois desta resposta, não importava o quão bela fosse, ela era apenas mais uma das pessoas que não o enxergavam como um igual e sim como um ser indesejável que precisava ser destruído a qualquer custo, era como as pessoas de sua antiga aldeia, aliás até o lugar descrito fora daquela cela parecia igual à terra cheia de ódio em que crescera, então o jovem se limitou a dar suas costas e dizer:
– Tanto faz, certamente onde eu estiver será a mesma coisa!
O rapaz se deitou novamente e silenciou. O desinteresse porém, tem seus efeitos colaterais, que se manifestam fortemente em certas pessoas, e se, antes Júpiter estava curiosa com a atitude daquele rapaz, agora se interessava mais ainda por ele e, em saber dos motivos daquela atitude. É claro que, sendo um soldado, não deixou transparecer sua curiosidade, nem disse mais nada, apenas fez alguma anotação na prancheta que trazia nas mãos e se foi.
Desde aquele dia, Júpiter apanhou o habito de passar por ali, ou seja, pela cela daquele rapaz que lhe dera as costas antes, porém, sem dizer palavra alguma, ela apenas vinha caminhando graciosamente até entrar no campo de visão do prisioneiro, e ali, a oficial parava e fazia mais algumas anotações em silêncio, como se quisesse apenas ser vista por ele, que, por sua vez a acompanhava discretamente com o olhar. Dessa forma o tempo passou…
Outro mês se completou sem mudança alguma na rotina até que, finalmente Starwish se levantou, caminhou até a porta de sua cela e contemplou o caminho que sua diretora fazia todas as manhãs, com um certo desespero é claro, ele viu um longo corredor repleto de carceres. A essa altura, o garoto já havia perdido completamente a noção do tempo, embora imaginasse que as anotações de Júpiter continham esta informação. Entretanto, se lhe fosse permitido contemplá-las, o que se veria era um tipo de gráfico desconhecido ao rapaz, e que exibia o aumento de seu interesse pelas caminhadas da oficial, e também outras informações pertinentes ao artifício que ela estava usando. A técnica era sutil demais para uma pessoa comum perceber e, inevitavelmente, alcançou seu objetivo. Júpiter primeiramente estimulou a curiosidade do garoto ao fazer suas anotações bem em frente a cela, e depois de algum tempo, a atenção do prisioneiro cada vez mais se dirigia a pessoa que fazia as anotações e menos a imaginar o que era escrito na prancheta, até que a curiosidade inicial fora substituída por uma grande familiaridade, ou seja, a moça agora fazia parte da atual vida de Starwish, de tal modo que era com grande expectativa que a aguardava todos os dias e afinal, tudo se concretizou quando o prisioneiro se dirigiu a sua captora como se falasse com uma antiga amiga:
– Olá Júpiter, ainda ocupada com a papelada?
Antes de se virar para respondê-lo, ela precisou ocultar o sorriso que havia surgido no canto de seus lábios, para só então respondê-lo:
– Achei que não te importasse com nada nem ninguém por aqui.
– Estivera calado por tantos dias, indiferente a tua diretora, por que a mudança de atitude agora?
Se lembrando das próprias palavras, ele disse energicamente:
– E NÃO ME IMPORTO!
Em seguida, olhou na direção oposta por um momento, fazendo menção de lhe dar as costas novamente, entretanto, já era tarde, ela já o havia pego completamente com seu último truque, ou seja, Starwish não poderia retornar a solidão voluntariamente, agora que tinha um rosto conhecido com quem falar, tampouco poderia negar-se a responder suas perguntas, ou ela o ignoraria. Refazendo sua perguntar, o rapaz falou:
– Apenas estou curioso quanto ao que diriges aqui, afinal, por que tantas anotações?
A moça respondeu:
– Esta é chamada, a Divisão Vermelha, encarregada do desenvolvimento de novas armas para a guerra. Meu trabalho consiste em avaliar os prisioneiros recebidos e determinar quais deles serão usados nos testes práticos. É isto o que tenho anotado, na maior parte do tempo, avalio prisioneiros.
Ambos perceberam que o clima havia ficado pesado com a resposta de Júpiter e que não se poderia dizer mais nada naquele momento, contudo, suas conversas nos dias que vieram se tornaram um habito, e ele contou sobre tudo o que passara na antiga aldeia, falou sobre seus pais adotivos, os pesadelos que tinha e o ódio dos moradores, também contou sobre o ritual de passagem e o que houve no navio de Ceres. Após conhecer toda a história do garoto, Júpiter comentou:
– É por isto que estava tão calmo dentro desta cela, a possibilidade de te livrares da vida, o agrada?
Respondeu ele:
– Todas as pessoas que tenho conhecido desejam minha morte, até a ti mesma, me pareceu assim no começo, confesso que seria um grande alívio encontrar o vazio do fim da vida e não ter mais de encarar tantos tolos!
Júpiter retrucou:
– Ora Starwish… não deveria pensar em realizar o desejo daqueles que te odeiam, estas pessoas não o aceitarão só porque morreste como queriam!
– Em vez disso, deveria lembrar-te da família que o acolheu, dirigir teus agradecimentos a eles e buscar a vida como retribuição, não a morte!
A amizade, aos poucos crescia entre os dois e, por isto, Júpiter se sentia cada vez mais angustiada a cada conversa que tinham. O que temia era uma pergunta em especial, aquela que não tornaria aquela situação real, até fosse finalmente feita e, muito embora tenha tardado, ele perguntou:
– Júpiter, o que acontecerá comigo neste lugar?
A oficial manteve as aparências enquanto seu interior se perdia, afinal, não adiantaria mentira e, pensando bem, talvez fosse até melhor ser aquela que lhe diria a verdade, porém, ela não o fez, não disse palavra alguma, apenas ficou em silêncio, ouvindo, ao mesmo tempo, seus próprios pensamentos e a voz de Starwish, como que ensaiando a conversa que teriam no fundo de sua mente:
– “… o que acontecerá comigo neste lugar?”
– “Todos aqui serão usados em testes bélicos, até a ti. Terás a honra de servir a um bem maior!”
– “Não pode deixar que isto aconteça comigo, Júpiter, precisa me ajudar a fugir daqui.”
– “Não seja tolo garoto, como pode achar que deixarei uma cobaia escapar?”
– “Este é o meu trabalho e eu o desempenharei a risca!”
– “Achei que fossemos amigos, achei que viera conversar comigo todos os dias, porque havia uma ligação entre nós.”
– “Amigos?”
– “Ligação?”
– “Achais mesmo que um mês, é tempo suficiente para uma amizade verdadeira?”
– “Não seja tolo garoto, não tenho interesse algum em ti, não há nada além da curiosidade em saber por que estava tão calmo no início, duvida esta, que já foi sanada, e quanto a ti?
– "És apenas uma cobaia, uma parte de meu trabalho que ditará tua morte!”
Em seguida, ela sairia dali rápida e decididamente, para não mais votar, e apenas daria a ordem, aquela que poria fim a vida do rapaz, entretanto, as palavras que houvera ensaiado em sua mente, ficaram presas na garganta, sem serem ouvidas. O silêncio se estendeu por tempo demais, até o ponto em que o rapaz precisou chamá-la pelo nome e repetir a pergunta, para, só então, receber a resposta:
– T-todos a-aq… todos aqui serão usados… serão usados…
Júpiter, por um momento, se perdeu em suas próprias palavras e sentiu como se uma força externa lutasse para tornar suas palavras em mentira. Ela precisou se acalmar, respirar fundo e encontrar forças para expulsar as palavras de dentro de si aos gritos, ainda assim, as palavras que saíram de seus lábios, não foram exatamente o que esperava:
– TODOS AQUI TERÃO TERÃO A HONRA DE SERVIR A UM BEM MAIOR!
Júpiter levou ambas as mãos a boca, num ato em que parecia querer conter palavras ditas de forma equivocada, e Starwish, subitamente recobrou a mesma expressão que possuía quando morava em sua antiga terra. Na verdade, a oficial sequer fazia ideia do porque dissera aquilo, e, de repente, começou também a contar sobre algo que o exército encontrara na parte mais profunda da base, durante algumas escavações, dias atrás. Disse também que, o rapaz apenas estava vivo por tanto tempo, porque ela mesma, já o havia reservado para o teste que viria, quando finalmente conseguissem alcançar o que quer precisasse ser alcançado.
– Em minha aldeia – falou o rapaz, depois de uma pausa – tenho ouvido como o exército do Sul avançou corajosamente para se por entre todos e a tempestade que viera do Norte. Sempre ouvi que os soldados existem para nos proteger dos estrangeiros que querem nos destruir, é desta forma que nos protege Júpiter?
– Fazendo-nos sofrerem tanto, até o ponto de desejarmos com felicidade pela morte?
Não foi por outro motivo, senão pelo mero desejo de combater aquelas palavras, que a oficial se libertou da agonia interna e respondeu duramente:
– Não lutamos por lixo, tal como és, pessoas a margem da sociedade, que se isolam na floresta e apenas praticam ritos religiosos que não contribuem para o crescimento do poder bélico de nosso país!
– O batalhão vermelho, sob o comando de meu pai e seus associados, têm salvo muitas vidas em nosso país, VIDAS QUE POSSUEM UM VALOR REAL e, até mesmo a guerra, tem virado a nosso favor!
– Sim, somos nós que defendemos o Sul do avanço dos outros reinos, se tua aldeia persiste crendo em fantasias e escondida no meio da floresta, deve isto aos nossos esforços em manter a paz, e está na ora de retribuir por isto!
Parece que era um habito dentro daquele batalhão, o de se justificar a cada ação que tomavam, algo em que ela acreditava, não por convicção, e sim por doutrinação:
– Te acha tão especial por ser odiado, não foste o único que viu a face da morte, é pelo trabalho dos bravos soldados deste batalhão, que estou aqui e, por isto, lhes devo não somente minha vida, como também a tua!
O silêncio caiu pesadamente sobre o local, se poderia ouvir os passos de um rato ecoando no corredor, caso algum passasse por ali, ao mesmo tempo, que lágrimas desceram pela face de Júpiter. Nenhum dos dois precisou dizer mais nada, e se pôde ver um fraco brilho de curiosidade no rosto do rapaz. Após uma longa pausa, Júpiter contou:
– Jamais esquecerei dos gritos…
– Saíamos da escola normalmente naquele dia e, poucos instantes depois de cruzarmos pelos portões, sombras aladas se abateram sobre minha cidade. Um ser de aparência réptil, dotado de asas veio e, com suas garras afiadas, perfurou duas de minhas amigas diante de meus olhos, ele as arrastou para longe enquanto gritavam e sangravam.
– Corremos de volta para dentro, perseguidos por outra destas feras. Portas simplesmente não as impediam. No total, foram seis alunos mortos…
– Contemplei a criatura escamosa tão de perto como estamos agora, seu hálito fedia a podridão e morte. De repente, fiquei coberta de sangue e pensei o pior, depois vi o monstro se despedaçando quase sobre mim, só então, percebi que aquele sangue asqueroso não era meu!
– Ao meu lado havia uma mulher de cabelos ruivos e caídos sobre uma tiara dourada em sua testa, vestida com uma armadura pesada e brandindo uma espada ensanguentada, era uma elite a serviço de meu pai, foi ela quem o matou, assim como a muitos outros semi-dragões por toda a cidade.
– Depois disto, desejei entrar para esta organização o mais rápido possível, a fim de, ajudar meu pai, Saffar e aquela Elite que me salvou. Por ser filha de quem sou, é que fui aceita antes de completar a idade necessária para o alistamento.
– Também soube depois, que aqueles monstros, faziam parte de uma experiência do Norte, em que o DNA dos antigos dragões fora usado no intuito de criar armas para a guerra, e é contra isto que lutamos.
Ele, não se comoveu, ao contrário, a raiva surgiu e ele sibilou:
– Agora vejo, és tão ruim quanto aqueles que lhe atacaram, não há diferença alguma!
De fato, ele tinha algum poder sobre Júpiter, pois, suas palavras a deixaram tão sem ação como nunca antes. Momentos depois, assumindo uma expressão mais severa, ela retribuiu seu olhar com raiva equivalente e se virou para ir embora, dizendo enquanto se afastava:
– Também sou uma elite a serviço do general e cumpro ordens, não tenho de ouvir sermão sobre conduta vindo de um camponês desassistido pela própria vila!
Ela não mais retornou a cela pelos próximos dias, assim como também, nenhum soldado viera para matá-lo, fazendo com o que cativo mergulhasse ainda mais fundo em sua depressão. O rapaz parou até mesmo de comer, embora a cara da comida, desde o início, o encorajasse a isso mesmo, se sentou num canto da cela permanecendo imóvel durante dias e esperou. Até que algo finalmente aconteceu e, certo dia, antes do fim da penumbra, Júpiter apareceu novamente, parecendo muito agitada e até um pouco ofegante, sem cerimônias, a garota foi logo dizendo enquanto tentava respirar:
– Ahh… S-Star… Starwish… precisa sair daqui imediatamente… t-todos… todos os prisioneiros serão executados em breve!
Ordens do general haviam chegado, o Batalhão Vermelho precisava ser realocado dentro dos próximos dias, já que existiam suspeitas quanto a informações vazadas. Contudo, a diretora da prisão já tinha, até mesmo, pensado em um plano para a fuga daquele prisioneiro em especial: antes de mais nada, os oficiais do alto escalão seriam retirados do local e, para isto, uma boa parte do contingente de soldados também partiria para garantir a proteção dos mesmos, restando um número limitado de pessoas na base, com a missão de destruir provas e de transportar o que mais fosse necessário. O extermínio dos prisioneiros se daria com o simples apertar de um botão, no momento em que o último membro de relevância do batalhão deixasse o local, e Júpiter, propositadamente seria esta última pessoa afinal, sair de sua cela não era tudo, ele precisaria de cobertura para abandonar o lugar.
– Acha que vou acreditar no que diz? – questionou o rapaz – por que motivo me tiraria daqui se teu trabalho, que tanto preza, é o oposto disto?
A moça pareceu cair em dúvida, levando uma das mãos sobre os lábios, enquanto o prisioneiro continuou a afrontá-la:
– Sei o que quer, desde o início tem me manipulado com teu charme, fazendo com que me apegasse a ti, apenas para satisfazer tua curiosidade, se quer minha morte, por que simplesmente não me mata logo e acaba com esta brincadeira?
– Starwish… – disse ela com dificuldade – eu… eu… não quero tua morte, ao contrário… quero que viva… quero salvá-lo.
O rapaz lhe virou o rosto na direção oposta, ou seja, de volta para dentro da cela, e falou:
– Não cairei novamente, acha que não vivi toda minha vida sendo enganado, sendo atraído para armadilhas e jogos mentais como este?
– “Quero ajudá-lo, acredite em mim.”
– “Podemos lhe livrar de teus pesadelos, basta confiar em nós.”
– “A aldeia deixará de odiá-lo se vier conosco.”
– É o que tenho ouvido desde o início, e jamais recebi ajuda alguma. O que queriam, era me humilhar, me destruir.
Os olhos de Júpiter se encheram de lágrimas enquanto observava o rapaz falar além das barras de metal:
– É por isto que sei, que também está mentindo, até mesmo aquele capitão era um mentiroso, tenho certeza de que deve estar por aí satisfeito em ter me jogado ao mar na primeira oportunidade, todo este mundo é maldito e mercê a mesma morte que desejam para mim!
– ESTOU DIZENDO A VERDADE! – gritou ela, agora chorando – e-eu tentei, é por isto que me afastei de ti, tentei, porém… não consigo mais tirá-lo da minha cabeça, é como se meus pensamentos estivessem o tempo todo sendo direcionados por uma força externa, e eles sempre me levam a ti, não quero que morra…
Estendendo suas mãos por entre as grades, a moça tentou alcançá-lo no fundo da cela, enquanto falava novamente sobre a fuga. Ele, a distância, viu lágrimas descerem pelo rosto da moça, diferentes desta vez, pois seu brilho não era fugidio, destinado a um passado difícil, seu brilho era intenso e, agora, mostrava-lhe verdadeira compaixão, tal qual os olhos de seus pais adotivos, os únicos que realmente se importaram. O brilho emanado pelas lágrimas de Júpiter, era como uma voz, ou uma força invisível, que fluía através da garota e lhe dizia para confiar, para aceitar aquele sentimento que buscava uni-los, assim como suas mãos se também se uniam, mesmo, separados por barras de metal.
A oportunidade de fuga se apresentaria no dia seguinte, então ambos repassaram o plano várias vezes, a diretora da prisão até lhe deu um pequeno rádio, pelo qual poderiam se comunicar quando fosse necessário e um cartão de acesso para usar o elevador.

CAPÍTULO 2:

O NOVO CARCERE

Finalmente, a ora da verdade chegou, então as coisas foram postas em prática. Starwish recebeu permissão, através do rádio, para ir, em seguida ouviu o som da fechadura eletrônica se abrindo remotamente. Timidamente o rapaz deu um passo para fora da cela e observou o corredor atentamente, constatando que não havia nenhum guarda por perto. Então seguiu em frente, a fim de pegar o elevador, por onde teria de subir até o andar mais alto, o que significava chegar ao nível do solo. Depois de sair do elevador, ele disparou pelo longo corredor ignorando quaisquer outros caminhos que iam surgindo nas laterais do mesmo, até encontrar a saída. Agora ele estava diante da última porta que o separava da floresta proibida, entretanto, precisaria esperar pela ordem de sua cúmplice para cruzá-la, ele aguardou. Se tudo isso corresse bem, depois de cruzar porta afora e a floresta se apresentasse, é que chegaria a maior dificuldade pois, ao redor da instalação haviam quatro torres de vigia atentas e muito bem armadas, ao menos, a sorte estava ao lado deles já que, devido à realocação de toda a operação vermelha, apenas uma das torres estaria realmente guarnecida e esta, era voltada ao mar, distante da saída principal por onde se deveria cruzar. Observando-a atentamente seria possível correr para a floresta ao redor quando o guarda estivesse distraído e, mais uma vez, ele precisava esperar que Júpiter cuidasse do assunto, ou seja, desligar as câmeras internas, distrair o guarda e dar o sinal, doutra forma, sem um salvador/guia, NINGUÉM ESCAPA DO CARCERE!
A espera parecia-lhe mais longa do que deveria ser, por um longo tempo de dúvidas, ele aguardou até que, finalmente ela acabou, no mesmo instante em que se ouviu uma voz, que Starwish acreditou, a princípio, ser daquela que o ajudava, porém, ao chamá-la de volta pelo rádio, não houve resposta e ele percebeu que o chamado não vinha do equipamento. A estranha voz que falava, se assemelhava tanto a de Júpiter, que ele muito procurou por ela ao seu redor e, não encontrando ninguém, ele voltou cautelosamente pelo corredor, se detendo a cada bifurcação que havia para investigá-la e sussurrar o nome de Júpiter esperando uma resposta. De corredor em corredor, de porta em porta, o jovem procurou em cada um deles até voltar ao elevador, onde procurou pelos espaços das ferragens, ver a figura da garota por entre eles. E por mais que a procurasse, nada encontrava, até que aquela voz, semelhante à de sua amiga, lhe disse:
– Continue criança, entre no transporte vertical e desça até me encontrar…
Starwish subitamente mergulhou num estranho transe, tal qual esteve em suas antigas visões, algo entre dormir e sonhar acordado. A voz continuou sussurrando ao ouvido do rapaz, de modo a lhe ensinar as operações secretas do elevador, sem que houvesse por parte dele, qualquer questionamento sobre o fato de se ouvir uma voz vinda do próprio ar a sua volta. O elevador então, desceu tão fundo, que o painel a frente do garoto já não mostrava informação alguma sobre o andar. E chegou até uma caverna que aparentava ter sido recém-escavada, foi quando, de súbito ele simplesmente se precipitou descendo do teto sem que houvessem trilhos ou paredes ao redor e atingiu o solo abaixo suavemente. E mesmo estando num buraco, no fundo da terra, existia ali iluminação elétrica, muitos fios e tubos de ventilação podiam ser vistos presos ao alto teto, passando ao lado de grossas colunas de sustentação feitas de madeira negra.
Seguindo a voz de uma garota, ele caminhou pelo corredor a sua frente, indo na mesma direção em que também iam os fios no teto e ignorando novamente todos os corredores laterais que iam surgindo. Nas profundezas da base havia toda uma rede de tuneis interligados, formando um labirinto, e seria impossível saber pra onde ir, a não ser que uma voz sobrenatural o guiasse. O solo abaixo de seus pés era irregular e fazia muito barulho a cada passo, pois era cheio de pedras soltas que seriam um verdadeiro problema se não houvesse luz. O caminho acidentado terminou num grande salão com paredes forradas de pedras rústicas, retiradas do próprio solo local e lá, se encontravam pequenas mesas que sustentavam estranhos computadores antigos, cheios de válvulas manuais enormes e, um pouco mais desperto pela visão das máquinas que conhecia apenas pelos livros de seus pais adotivos, Starwish sentiu uma certa apreensão quanto a porta seguinte, que estava a sua frente, do lado oposto aos computadores, era um portão enorme, feito de metal fundido, aparentava ser tão pesado, que precisaria de cerca de cem homens para movê-lo e, mesmo parecendo que som algum poderia transpô-lo, o rapaz tinha certeza de que a dona da voz que ouvia cada vez mais forte em sua mente, se encontrava atrás daquele portão!
Chegando mais perto, se pôde ver que não estava trancada e, ainda que fosse enorme, a porta era leve e fácil de ser empurrada. Com um rangido seco ele a abriu e atravessou-a, lá dentro, o rapaz esperou encontrar por uma mulher, talvez a própria Júpiter já que a voz se parecia tanto com a da oficial, só que não viu ninguém. O que havia era outra sala idêntica a anterior, porém vazia, como um grande buraco cavado as pressas. Depois de se colocar dentro da sala, sua visão revelou uma rocha que brilhava estranhamente, era como um enorme cristal arredondado de cor branca, com cerca de um metro de altura e, traspassando-o, estava uma espada magnífica: sua empunhadura toda, incluindo o guarda-mão e o quebra crânios na extremidade do cabo, eram feitos do mais puro ouro que já se vira, isto é, se alguma vez na vida houvesse visto o nobre metal; sobre o cabo, havia também um material ferroso, porém flexível, que o envolvia, deixando apenas um filete de ouro espiralado a mostra. Parte da lâmina permanecia exposta e afiada, brilhava ainda mais que o próprio cristal a qual estava preza só que, apesar de revelar um metal prateado e baço, o brilho que emanava não condizia com a aparência do material, pois era dourado e hipnotizante. Seria esta, a tal arma encontrada pelo exército que a diretora havia insinuado?
A espada causava ao rapaz uma sensação de paz, de receptividade, parecia que o convidava a tocá-la então, estendendo a mão em sua direção, Starwish sorriu e disse:
– Caso eu a retire deste cristal, devo esperar me transformar no herdeiro do rei dos homens?
Entretanto, antes de tocar o cabo, ele sentiu uma vibração, algo que o lembrou vividamente de seus pesadelos e, por uns instantes, acreditou que tudo não passava de outro sonho, pois ouviu novamente:
– “Vos trarei a destruição, a morte e o brilho, a face dos quatro reinos”!
Ele vacilou em sua recordação e deu um passo indeciso para trás, encontrando pelo caminho, uma pedra solta que o derrubou e, no chão, ele disse:
– E-é a mesma… é a mesma voz que falara em meus sonhos… aqui é Oeste, então esta espada… deve ser ela, a lâmina que domina o mundo da lenda que Ceres me contou naquela vez.
– Não entendo, como é possível que a lembrança não me tenha ocorrido antes?
– Foste tu que me fez esquecê-la?
E a encarando com olhos acusadores, fez mais uma pergunta:
– Se eu a empunhar, trarás a justa destruição a este mundo?
Contudo, graças ao novo ângulo de sua visão, obtido a partir da queda, Starwish notou que, perfeitamente escondidas atrás da pedra brilhante, como se fosse proposital, haviam dois corpos, ou melhor dizendo, dois esqueletos que claramente estavam ali a décadas, pois não havia nenhuma carne, apenas ossos, tão brancos que chegavam a refletir o brilho dourado que a espada emanava.
Ele ficou de pé e se aproximou, vendo então, pelas roupas, que eram duas garotas trajando vestidos antigos: uma de rosa até a altura dos joelhos, com estampas de flores vermelhas; a outra porém, tinha suas vestes cobrindo até os pés, de cor verde e sem nenhuma estampa. Ambas as roupas estavam intactas e cobertas por uma fina camada de poeira, até mesmo, seus cabelos, jaziam no chão abaixo dos crânios com tanta perfeição que pareciam ter sido postos ali por mãos humanas. A fim de combater a desconfiança que subitamente brotou nele, a voz da lâmina se manifestou novamente e junto dela, um pensamento invadiu a cabeça do garoto e ele repetiu com eco nas palavras e um sorriso maligno:
– Juntos!?
– Sim, juntos, tu e eu, poderíamos retribuir tudo aquilo que sempre desejaram para nosso futuro, uma morte horrível e dolorosa!
É verdade que em seu interior existia muita raiva, até pensamentos de vingança já o acometeram antes, por exemplo, quando odiou cada um dos homens que o impediu de se refugiar num bote salva vidas, porém estes pensamentos foram momentâneos e não haviam se fixado em sua mente, antes preferia dar a própria vida para ser reconhecido, da mesma forma que Júpiter dissera, o que quero dizer é que, este ódio era diferente, ele havia surgido tão poderoso, na mento do rapaz, no exato momento em que aquela voz o chamara, ele não vinha de seu interior e sim, fora atirado dentro dele (por quem?), talvez pela própria espada!
Infelizmente não houve tempo suficiente pois, ainda que, em sua mente, ele tenha percebido que o ódio não vinha de si mesmo, e que tenha se negado a tocar aquele mal, seu corpo o desobedeceu e cedeu a influência que era irradiada por todo o salão de pedra. Sua mão sem controle se lançou sobre o punho da espada, agarrando-a firmemente para dominar o mundo. Com um movimento rápido ela foi retirada da pedra, imediatamente se pôde sentir tudo o que nela continha e o que exigia para ressuscitar nas mãos de seu novo portador: bilhões de vidas pelo mundo foram consumidas para alimentar a maldade, e talvez como um presente obscuro, para que não perecesse sem saber o porque, a arma concedeu-lhe uma última visão sombria, assim, Starwish conheceu sua verdadeira identidade e soube também, que ela não lhe permitiria soltá-la nunca mais!
– “Eis que sou liberta novamente, para a morte e a conquista. Todas as vidas me pertencem e delas, tomo posse neste momento. Este será o meu reino, O REINO DE CRISTAL!”
A luz da alma brilhou ainda mais forte no interior do metal que compunha aquela lâmina, e foi através dos sacrifícios que recebia, que o controle sobre seu portador se tornou perpétuo. Em resposta ao despertar do mal, o mundo inflamou sua ira e a área montanhosa próxima a floresta, ao redor da base, iniciou uma reação que se espalhou em todas as direções, desde a floresta proibida do Oeste, até a Terra do Sol Eterno onde ele vivera na infância, depois subiu ao Sul, na Terra Congelada e, por fim, foi em direção ao deserto do Leste. Durante a reação, todas as montanhas existentes até a borda do mundo se converteram em vulcões e explodiram em violentas erupções, entretanto a lava que dispersavam era diferente, se manifestando em muitas matizes de tons de roxo, vermelho ou branco e, embora gerassem calor, não calcinavam aquilo que tocavam como era de se esperar. A substância que cobria o mundo era fria e estranha se comparada a lava comum. As montanhas foram as primeiras a serem cobertas pela lava cristalina, em seguida, ela desceu até as cidades dos quatro reinos, as engolindo. Objetos e construções permaneceram intactos durante o evento, enquanto que, as vidas conscientes tinham outro destino, pois alimentavam e avivavam aquelas cores. Algumas horas após a erupção, a lava se solidificou em toda parte, áreas imensas de rochas coloridas até onde a vista alcançava, brilharam mais intensamente no Sul refletindo o Sol Eterno, assim como, ampliavam o frio do Norte e se alimentavam da umidade no Leste. Todos os reinos foram unidos sobre as pedras, formando assim um único Reino de Cristal Reluzente. Paralelo aos efeitos que ecoavam pela dominação, o novo portador também sofria com a dadiva que recebera, pois viu o que desencadeou ao libertar a espada e sentiu, tão real como se as mesmas rasgassem sua carne, as mortes de bilhões de pessoas que eram consumidas, as ouviu gritando, sofrendo e compartilhou de toda a dor em seu próprio corpo. Qualquer um teria enlouquecido, destruído pela insanidade da tortura porém, a lâmina que repousava em sua mão direita não permitiu isto e manteve sua mente intacta por todo o evento, ela jamais o deixaria, um escravo por toda a vida!
Atordoado, ele precisou de muito tempo para se recuperar da experiência para conseguir ficar de pé, e fora justamente o objeto, ou o ser… a causadora da ruína do mundo, quem lhe concedeu a força que precisava para fazê-lo. Ao ser posto de pés, o novo portador contemplou o vazio da caverna em que se encontrava e viu que não havia mais o que se pudesse fazer, a não ser sair dali levando a maldição consigo. Voltou por todo o caminho, apanhou o mesmo elevador de antes e passou pelo corredor que o levaria a saída. Lá fora, algo lhe pareceu estranho, se é que tudo o que aconteceu antes já não fosse estranho o bastante: das quatro torres, três estavam cobertas com cristais brancos, apenas uma permanecia intacta, justamente aquela que poderia tê-lo impedido de sair da base e, com curiosidade, ele subiu pela escada que levaria até o topo. Lá em cima, o rapaz adentrou a sala do vigia apenas para que sua dor se tornasse ainda maior do que aquela que sentiu ao testemunhar a destruição do mundo, os painéis das câmeras dentro da guarita mostravam estática e todo os outros equipamentos também jaziam intactos, era como se nada tivesse acontecido ali, exceto por dois corpos inertes no chão: havia uma forma feminina bela e quase nua sobre o corpo de um guarda, o garoto olhou friamente para a garota percebendo a que ponto chegara o sacrifício de Júpiter para preservar tua vida, então ele sorriu e disse:
– Ao menos não tiveste também o corpo consumido por esta coisa, sequer chegou tocada pelo guarda…
Em seguida se ajoelhou diante dela e abraçou-a, em prantos. Ainda que tenha tentado atirar a arma para longe, não foi capaz de fazê-lo, pois a lâmina não o deixaria escapar e, impotente, ele apenas gritou tão alto quanto pôde:
– NÃO DEIXASTE O CORPO DE JÚPITER INTACTO PARA QUE EU PUDESSE ME DESPEDIR, NÃO, FIZESTE ISTO PARA ZOMBAR DE MIM, TEU ESCRAVO, MALDITO SEJA!!!
– UM REINO DE CRISTAL?
– NÃO GOVERNARÁS NADA, ALÉM DE CADÁVERES, ESPERO QUE ALGUM DIA, JUNTO DE MINHA MORTE, SEJAIS DESPEDAÇADA COMO O VIDRO MALDITA!!!
Depois disto, ele nunca mais conseguiu falar contra o poder que o escravizava, havia sido calado pela espada, nem conseguiu sentir pesar por ter sido sua mão direita a responsável por jogar o mundo na tribulação, porém, foi permitido a Starwish se lamentar pelo destino de Júpiter, sua guardiã e amiga…


NOTAS DE RODAPÉ:

GAMER – Quando foi cunhando, o termo se referia a jogadores de RPG de mesa, apenas com o avanço dos consoles é que foi atribuído a jogos de videogame.

THE VERGE – Portal online de notícias, no ar desde de 2011. Endereço: www.theverge.com

CERES – Planeta-anão localizado no sistema solar em um cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter.

SAFFAR – Planeta gasoso, localizado na estrela Upsilon Andromedae a cerca de 40 anos-luz da Terra.


NO PRÓXIMO CAPÍTULO:

TÍTULO DO CAPÍTULO AQUI (LINK)


Prévia do próximo Capítulo Aqui.


QUER APOIAR O BLOG?

Saiba como nesta Página (Link).

Comentários

RECOMENDADOS:

COMO É O INFERNO?

Falar sobre o inferno simplesmente não deixa de ser um assunto interessante (bem… digo isso na falta de palavras mais “adequadas”…) este não é descrito unicamente na Bíblia Cristã, diversas outras religiões e mitologias ao redor do mundo possuem sua própria “versão” do inferno com particularidades e semelhanças que são notáveis. Contudo, este artigo não se destina a compará-lo nos mais diversos cenários, mas sim compartilhar alguns relatos escolhidos a dedo que são (a meu ver) bastante relevantes e/ou interessantes, portanto merecem, ao menos, serem conhecidos. Pintura portuguesa a óleo sobre madeira, datada entre 1510 e 1520, seu verdadeiro autor é desconhecido, mas teria sido encomendada e guardada no Convento de São Bento da Saúde. Eu recomendaria iniciarmos nossa viagem falando sobre o Inferno de Dante, porém, sobre isso acabei discorrendo num outro projeto aqui do Blog (e não pretendo revisar e “relançar” todo o texto), que basicamente é uma revista virtual sobre animes, games e c